Analisar o processo penal no contexto latino-americano é desafiador, em especial, por conta de sua complexidade histórica, social, jurídica e cultural. Mas, esse é o caminho que me dispus a percorrer nessa sequência (trilogia) de textos sobre a oralidade. Como bem pontuado por Caíque Galícia e Vinícius Vasconcelos a própria história da identidade latino-americana não decorre da visão bucólica de indígenas cooperando pela paz social e resolução pacífica dos conflitos, mas, eminentemente, deriva das marcas de um continente com veias abertas (Galeano, 1984) desde a colonização exploratória europeia.
Agora, tentarei propor a ressignificação de dois conceitos básico do processo penal – natureza jurídica e finalidade do processo -, passando pelo sistema processual, para, só então, demonstrar a identificação dos equívocos e destacar os impedimentos para o avanço prático-teórico da implementação de um processo oral que se paute na cultura das audiências.
Os autores clássicos que antecederam o contexto constitucional de 1988 entendiam e explicavam o processo penal de forma distinta da perspectiva de hoje. A natureza jurídica era de potestade do estado. Por exemplo: José Frederico Marques afirmava que da prática de um fato delituoso nasce para o Estado o Direito de punir. Na mesma linha Hélio Tornaghi dizia: “diante do juiz criminal, é meio hábil para tornar efetiva não apenas a sanção criminal, mas ainda para o ressarcimento e reparação civil”. Em momento mais recente, temos o posicionamento de Fernando da Costa Tourinho Filho, que embora tenha escrito já na vigência da atual Constituição, deixa clara sua matriz teórica em tempos passados, por exemplo, quando diz que “no instante em que alguém realizada a conduta proibida … o Estado tem o dever de infligir a pena ao autor da conduta proibida”. Constatação: a finalidade do processo penal é/era aplicar a lei penal.
Ocorre que, tais perspectivas mudaram e se tornaram insustentáveis. Como dizer que o estado tem o direito/dever de punir antes de uma sentença condenatória ser alcançada pelo trânsito em julgado? Como manter a perspectiva de finalidade do processo penal como instrumento de aplicação da lei penal, como se dele (direito penal) dependente fosse e, pior, como se mero carimbador/chancelador de condenação fosse? Estaríamos negando a autonomia científica processual penal.
A proposta que trago como forma de ressignificação desses institutos é a de que a natureza Jurídica do Processo Penal é um verdadeiro direito fundamental de cidadania que está muito bem-posto por José Emilio Medauar Ommati quando diz que “no âmbito do judiciário, a equidade é a exigência no sentido de que a estrutura do Poder Judiciário seja construída de tal forma que garanta a todos os envolvidos em um processo os mesmos direitos e obrigações, aquilo que na tradição brasileira conhecemos como os direitos processuais, tais como, e fundamentalmente, contraditório, ampla defesa, isonomia, e devido processo legal. Uma realidade pós constituição que ainda é rejeitada por grande parte dos juristas.
Compreendendo a natureza jurídica do processo penal, avançamos com a importância de entender o fenômeno processual, conjugado com o direito material, pois, é dessa perspectiva que se caminha para identificação da finalidade do processo penal, como bem-posto por Juarez Tavares A teoria crítica do delito tem como objetivo estabelecer limites dogmáticos ao poder punitivo do Estado por meio de um controle sobre as agências de intervenção e sobre a jurisprudência. Essa é uma tarefa que corresponde à estrutura do Estado Democrático de Direito, que tem por base a proteção da dignidade da pessoa humana, dos direitos humanos e da cidadania. Ou seja: processo penal é limitador do poder.
Continuando, como bem pontuado por Fauzi Hassan Choukr, a concepção de processo como instrumento de garantia dos direitos fundamentais, não só, confirma sua natureza de direito fundamental, como também, corrobora a finalidade limitativa do exercício do poder, quando diz: Do ponto de vista restritivo – a finalidade do processo “em si” – e a partir do conceito de processo aqui empregado, tem-se que ele serve à preservação da liberdade justa, com o que se supera a compreensão que o processo penal é um mecanismo prioritariamente voltado para a punição.
Portanto, identificar a natureza jurídica e a finalidade do processo penal, de nada adiantará se não estivermos inseridos em uma compreensão lógica de sistema processual adequado, que inevitavelmente ditará a forma de desenvolvimento do processo para interpretação e aplicação das normas processuais penais. Por isso, necessário definir o método de leitura compreensiva do processo penal, significa definir qual é o nosso paradigma de leitura, buscar o ponto fundante do discurso. Aqui, a opção é pela leitura constitucional e, dessa perspectiva, visualizar o processo penal como instrumento das garantias constitucionais.
Passando para a compreensão do que seria um sistema acusatório, importante destacar a afirmação de Leandro Gornick Nunes de que o processo acusatório é cognitivo, imune ao arbítrio, com igualdade entre os sujeitos … com respeito aos pressupostos do agir comunicativo, ou seja, igualdade entre os sujeitos comunicantes e aceitação do resultado por esses sujeitos, desde que respeitadas as regras processuais democráticas. Logo, trata-se de um processo muito mais vinculado à filosofia da linguagem e muito mais democrático.
Dispensamos muitas forças para dizer que uma das principais características de um sistema acusatório, seria a divisão de funções, entre, acusar, defender e julgar. Sim, é uma das características mais importantes, mas nitidamente insuficiente. Agora, necessário voltarmos os esforços para a implementação da oralidade que, consequentemente, trará consigo a publicidade e o aprimoramento do contraditório.
Vejam que, a oralidade é uma forma de comunicação mediante o uso da palavra, onde, sob a perspectiva jurídico-processual, adquire conotações que transcendem a simples expressão verbal, logo, não se resume a uma oratória, como muitos insistem em confundir. De fato, se refere a um sistema de direitos e garantias inseparáveis, que exige a compreensão do sistema processual adequado (acusatório), princípios fundantes (contraditório, presunção de inocência), natureza jurídica do processo criminal (direito fundamental), finalidade do processo criminal (limitação de poder e garantia de direitos) e cultura das audiências para tomada de decisões.A oralidade é valiosa na medida em que permite alcançar o imediatismo. Ou seja, a oralidade é um instrumento a serviço da celeridade. Por quê? Sua parte, o imediatismo – que entendemos como o contato direto do julgador com as provas produzidas/apresentadas pelas partes – sua importância remete a três razões: (1) ordena ao juiz e ninguém menos que o juiz seja aquele que conhece a prova, proibindo a delegação de funções; (2) permite ao juiz testemunhar diretamente a “fonte” da informação com a qual o levará à sua decisão, evitando assim o risco de distorção sofrida pela informação quando recebida de “segunda mão”; e (3) permite que o juiz possa julgar, testemunhar e controlar o modo como a informação é produzida. Sem contar a questão persuasiva pelo recorte argumentativo.
Thiago Minagé
Pós Doutor em Direito pela UFRJ;
Doutor e Mestre pela UNESA/RJ;
Conselheiro Seccional da OAB/RJ;
Advogado Criminalista.