Por uma reanálise da teoria do processo penal. 

É no próprio texto constitucional que encontraremos os princípios orientadores do processo, que têm como incumbência garantir os direitos fundamentais e individuais de cada um dos integrantes de nossa sociedade. Nesse sentido, estruturado em bases constitucionais muito bem definidas (ao menos deveriam estar), o direito processual penal tem caráter essencialmente garantista instrumental constitucional limitador do poder, uma vez que, é meio de proteção dos direitos individuais e meio de que se vale o próprio Estado para tornar concreta a aplicação das normas penais e suas respectivas consequências jurídicas.

A ideia proposta por Luigi Ferrajoli de que “nulla culpa sine judicio” possui significativa grandeza e importância para compreensão deste tema a ser explicada mais à frente. O processo penal não é algo que se possa explicar de forma reducionista, como por exemplo, identificando funções e suas respectivas definições. A ideia de análise da finalidade do processo penal, tem como desafio inúmeras variantes, tais como, a incerteza do resultado processual, exercício do poder e consequente controle, garantia de direitos.

Necessário, ainda, identificar quais as condições legitimadoras para o exercício do poder estatal, seja, pela definição das condutas proibidas, como também da forma que se estabelece a atuação jurisdicional, ou seja: por quê? quando? e como punir? (ou não punir), por quê? quando? e como proibir? (ou não proibir), por quê? quando? e como julgar? (ou não julgar). 

Encontramos em Ferrajoli a melhor forma de descrição dessas condições formais da legitimação do exercício do poder, que são: (i) interna, pautada no princípio da legalidade, que estabelece as condutas criminosas, não com base na reprovabilidade moral e, sim, individualizando taxativamente o que é proibido de ser praticado; (i) externa, que além da interna, tem como objetivo especificar as justificações políticas que levaram a estabelecer determinada conduta como proibida.

Retomando às variantes do processo, temos na promulgação da CRFB/1988, a necessidade de adequação do processo para que esteja em sintonia com os ditames constitucionais. Tanto que, o tratamento do processo como mera relação jurídica entre as partes e o juiz, foi colocado para que o processo servisse como instrumento de jurisdição para realização dos escopos metajurídicos de pacificação social. De certa forma, óbvio que aqui já começam as incoerências entre processo e constituição.

A ideia de juiz, autor e réu compondo uma relação jurídico (de direito e obrigações mútuos) é predominantemente fomentadora de uma protagonismo judicial com consequente enfraquecimento das partes (autor e réu). Principalmente, por permitir que o juiz seja o único intérprete no e do processo, podendo, inclusive, fundamentar sua decisão em argumentos metajurídicos alheios a preceitos constitucionais.

A falta de precisão compreensiva acaba por ser uma ferramenta que sempre favorece a discricionariedade judicante e, desta forma, o arbítrio estatal. Aqui é possível perceber o perigo de institutos com conceitos indeterminados, onde o vazio criado pela falta de referencial semântico legislativo é preenchido no momento do ato decisório baseado naquilo que entende o julgador. Quando não há forma precisa, não existe garantia e segurança aos envolvidos (direta e indiretamente) pelo sistema de justiça criminal. 

A conhecida teoria geral do processo (cível) traz em si a concepção sobre os escopos do processo, que Candido Rangel Dinamarco reconhece como fins ideais delineados que seriam definidos como social, político e jurídico. Para o referido autor os fins do processo seriam:

O escopo social tendo como finalidade pacificar a sociedade através da realização da justiça e mediante a utilização de critérios justos de segurança jurídica, conscientizando a população de seus direitos e obrigações. 

O escopo político o processo serve para reafirmar o poder estatal de decidir de forma imperativa, assegurar o culto ao valor ‘liberdade’ e assegurar a participação dos cidadãos nos destinos da sociedade política. 

E, por fim o escopo jurídico, aplicar a lei ao caso concreto.

Assim, a partir dessa visão de sistema jurídico (relação processual) onde o ponto central é o exercício do direito de ação é entendido como finalidade do processo a tutela do direito daquele que alega (autor). Nada difícil concluir que o processo serve (nessa perspectiva de relação jurídica), apenas, para satisfação/tutela/proteção de um direito alegado pela parte autora.

Ocorre que, após analisar e entender as teorias inerentes ao exercício da ação, constata-se uma forte crise no conceito de relação jurídica processual por conta de sua generalização e abstração conceitual, que acaba desconsiderando a própria situação material (sendo certo que penal e processo penal estão ligados, embora sejam autônomos) sem explicar, ainda, a forma de exercício do poder do estado frente às particularidades de cada caso pena considerado concretamente. 

Com isso, toda a estrutura processual penal que permanece n perspectiva de relação jurídica, acaba por desconsiderar a realidade fática a ela submetida, deixando de garantir direitos de todos os envolvidos e sem criar mecanismos de controle do uso do poder. Óbvio que jurisdição remete a outra dimensão no processo penal que transcende o poder-dever do judiciário completamente distinto do exercido no processo civil.

É de extrema importância entender o fenômeno processual, conjugado com o direito material e isso não significa vincular um ao outro, muito menos, transportar teorias de um para o outro, mesmo porque, apenas com essa conjugação que se alcançará uma correta adequação procedimental, intimamente relacionada aos direitos fundamentais e garantias de cada indivíduo envolvido no processo.

Praticado o crime incorre e uma pena. Pois bem! Eis a importância compreensiva dos institutos em seus devidos lugares para impedir distorções interpretativas. 

No âmbito material encontramos uma situação estática, onde, praticado o preceito primário, terá como consequência o preceito secundário. Evidentemente, pelo discurso do senso comum a justiça deve sempre prevalecer, ou seja, a todo crime equivale uma pena. 

No âmbito processual penal a segurança jurídica do direito penal (crime = pena), não passa de uma retórica despida de efetividade prática na garantia de direitos e limitação do poder, pois estamos falando de um método de verificação da existência do crime e sua autoria. A situação é dinâmica e incerta.

A compreensão do processo e do papel das partes e do juiz no Estado Democrático de Direito, depende de revisitação crítica e reflexiva do liberalismo e da socialização processual, iniciando-se pelo abandono dos equívocos dos antigos modelos, para a busca de um sistema processual que garanta os direitos e garantias dos envolvidos compreendendo que o papel a ser desempenhado pelas partes, através do contraditório, é fundamental e jamais será possível sem o amparo da publicidade e da oralidade.

Importante firmar o entendimento de que o processo como um dispositivo articulador de elementos de várias ordens, cujas modalidades de interação são regulares e, ainda, previsíveis e no processo penal, forma ‘é garantia e limite de poder’, onde se exerce o poder de punir em detrimento da liberdade. É um poder limitado e condicionado, que precisa legitimar-se pelo respeito às regras do jogo sem o ‘informalismo processual’. Assim, a primeira finalidade do processo penalé garantir os direitos inerentes a cada indivíduo submetido ao exercício do poder jurisdicional; prestando, ainda, em segundo plano, à limitação do exercício do poder; impondo respeito irrestrito às formas procedimentais estabelecidas, para então, proteger aqueles que devem e/ou serão absolvidos e, ainda, legitimando pelo procedimento correto a punição a ser imposta. A segunda finalidadeé a limitação e controle do uso/exercício do poder jurisdicional. O poder não pode ser empoderado, e sim, limitado.

Thiago Minagé¹

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