Prisão Preventiva e o Procedimento do Júri após a Lei 13.964/2019 e (RE) 1235340 – PARTE I

Faz tempo que países (não só) latino-americanos encamparam a ideia (necessária) e atualização de seus respectivos sistemas de justiça criminal. Como resultado de diversos fatores, entre eles, o processo de recuperação ou normalização democrática e a crítica aos sistemas judiciais, há um processo de revisitação e alteração legislativa. Principal desafio? O compromisso (indevido) da justiça (judiciário) criminal no combate à criminalidade.

Estamos falando de sistemas próximos aos modelos inquisitoriais, pautados em uma metodologia de trabalho predominantemente escrita, sigilosa, confusa na prática e no exercício das funções entre acusar e julgar, escasso controle das garantias e profunda violação de direitos individuais. Percebe-se que o poder garantidor de direitos (judiciário) se tornou um instrumento de restrição. 

Esse processo de reforma, atualização e adaptação sistêmica-legislativa, além de lento, quando feito gradativamente, acarreta constantes distorções interpretativas de consequências drásticas no dia a dia, ou seja, o período de transição cria o que denomino de – sistema confusional – onde se usa algumas categorias do sistema acusatório, no entanto, mantendo-se a matriz predominantemente inquisitiva. Não sabendo ao certo em qual sistema estamos trabalhando. 

O surgimento da lei 13.964 de 2019 demonstra certo avanço legislativo rumo ao reconhecimento da necessidade de implementação da cultura das audiências para tomada de decisões. Mas o judiciário, garantidor de direitos, restringe o alcance das normas, mais uma vez, conforme se percebe do julgamento perante o STF (RE) nº 1235340

O impacto da alteração legislativa foi avassalador no âmbito acadêmico e totalmente oposto na seara prático-processual. Por quê? Criou-se um quadro de expectativas não correspondido. Para o nosso objeto de análise – procedimento do júri -, a frustração foi extremamente acentuada.

A importância da tradição dos direitos fundamentais no processo penal não significa um discurso utópico e superado, pelo contrário, os avanços conquistados pelo iluminismo, tais como, liberdade, segurança e direitos humanos não podem ceder para um reducionismo de minimização de garantias. 

É preciso entender que, o descrédito normativo em uma sociedade de risco, pode gerar uma verdadeira desestabilização político-legislativa. Levando a prisão preventiva ao patamar de centralidade do processual e deixando de lado a finalidade a ser alcançada pelo processo penal, que é a garantia de direitos fundamentais/individuais e limitação do poder.

Sem muito esforço, quanto ao descrédito normativo podemos observar a idealização do positivismo clássico trabalhado por Hans Kelsen fincado em três postulados: completude do ordenamento jurídico, neutralidade e segurança jurídica

Posteriormente, essas premissas positivistas e seu rigor científico (lógica automática, irrefletida e mecânica) foram alvos de duras críticas, tanto que, iniciou-se um movimento de superação dos referidos postulados. 

À época do positivismo clássico, o papel do magistrado era um problema, pois, a este, competia tão somente aplicar o texto da lei, ou seja, o juiz não criava direito(s) através de suas sentenças, mas tão somente descobria o que estava ‘escondido sob a norma’.   

Com a complexidade dos debates jurídicos, a questão dos direitos sociais, dos direitos humanos, dentre outros, desvelou a incompletude da prometida fórmula pré-constituída de solução dos conflitos, que deveriam estar estabelecidas na lei.  

Logo, instala-se uma crise interna do próprio positivismo, por se tratar de um sistema contraditório, frente a seus postulados de (in)completude, segurança e neutralidade, totalmente incompatíveis com a natureza humana, até porque, são pessoas que proferem sentenças e não máquinas.

 Imerso nessa crise, parece não haver dúvida de que o positivismo não conseguiu aceitar a viragem interpretativa ocorrida com a filosofia da linguagem no direito parecendo totalmente ‘perdido’ com as consequências no plano da jurisprudência. De algum modo se percebeu que aquilo que está escrito não cobre a realidade.

Assim, pensa-se em um novo paradigma (com fortes influências neoliberais) trazendo à tona a perda da eficácia do direito e o enfraquecimento do Estado, desaguando em um esgotamento do paradigma da legalidade estatal moderna, que não consegue responder de maneira eficaz e legítima às demandas e aos anseios da sociedade. 

Eis o início do descrédito na lei, que se revela disfuncional e ineficaz, embora escondido na aparência da competência, certeza e segurança. Um detalhe: o problema não está na lei, e sim, no positivismo clássico de fórmulas prontas. Eis a confusão.

Os grandes riscos caracterizam-se por não serem domináveis, por serem vagos. Criminalidade organizada, corrupção, riscos econômicos, dentre outros, são exemplos caracterizadores, do que se entende por risco

Logo, perante a impossibilidade de domínio desses riscos a população passa a ser dominada pelo medo, reagindo pelo pleito de mais segurança, fruto de uma indignação e consequente pânico, que se instaura. 

Inevitavelmente surge o agravamento do meio repressivo. Não só no âmbito penal e processual penal, mas o próprio papel do Estado se desloca nesse contexto, o Estado-juiz deixa sua posição de garantidor de direitos e se posiciona, agora, como parceiro no combate à criminalidade. Os direitos fundamentais se tornam entraves no combate à criminalidade.

Cria-se a ideia de direito fundamental à segurança que tem como obstáculo, justamente, os direitos fundamentais individuais, principalmente, a liberdade. Consequentemente, utilizam a Prisão Preventiva como principal instrumento idôneo para o domínio e controle dos grandes riscos. A prisão se justifica pela precaução, ou seja, surge um novo paradigma: O Paradigma da Prevenção. Da forma que está posta na legislação em vigor a prisão preventiva se torna regra e o preso, em tese, presumidamente inocente é colocado na posição inversa e agora deverá demonstrar a desnecessidade daquela prisão.

Thiago M. Minagé¹

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